Terminei de assistir The Last Dance e precisamos conversar sobre essa série da ESPN em parceria com o Netflix.
Como produtor e roteirista, The Last Dance é o sonho. Como fã de basquete, é extremamente prazeroso. Como uma pessoa que gosta de documentário esportivo, é a obra prima.
A série sobre Michael Jordan e a dinastia Chicago Bulls nos anos 90 na NBA é o conteúdo e a forma perfeita de uma produção e execução de um documentário. E não tenho dúvidas em afirmar que só foi possível pelo TOTAL ACESSO que a equipe de produção teve aos bastidores, aos jogadores, dirigentes, coletivas e tudo o que aconteceu com aquele time entre 91 e 98. Sim, acesso.
Não se faz documentário sem documentação. Sem ARQUIVO. Sem mostrar o que está sendo contado. E isso The Last Dance faz com perfeição: nos transporta aos anos 90. Você se sente dentro da quadra, dentro do vestiário, você participa dos dramas pessoais, se irrita com atitudes, toma partido em discussões. Você vive literalmente tudo o que está sendo exibido.
Além de ter um arquivo espetacular, The Last Dance não para por aí. A série também tem PESQUISA, outro ponto fundamental para um documentário funcionar. As histórias familiares de Pippen, Rodman, Kerr, Jordan são tocantes e emocionantes. As imagens e o início de vida para construirem caráter e personalidade de Jordan, Rodman, Kerr e Pippen, também.
Com ARQUIVO e PESQUISA, você já pode ter um documentário se quiser ser preguiçoso, mas para ser excelente você tem que ir além. E The Last Dance vai. Os produtores encontraram e entrevistaram todos os GRANDES PERSONAGENS daquele time e todos os ANTAGONISTAS para reverem e reviverem aqueles momentos. Era hora de confirmar os fatos e abrir espaço para as versões individuais: CONFLITO. Toda grande história precisa de CONFLITO, não estou falando de embate, briga, socos… e sim de uma força oposta que atrapalha a conquista do seu objetivo. O time perdedor dos Bulls nos anos 80; Thomas, o jogo sujo e o Detroit; a briga de Kerr e Jordan; os sumiços de Rodman; Payton e os Supersonics; Miller e o Indiana; Krausen e a decisão de reformulação do time… CONFLITOS. Todos eles são essenciais para que The Last Dance não seja apenas mais uma ode a um grande time, mas sim uma história de dedicação, perseverança, superação. A jornada do herói tão falada e lida em livros de iniciação ao roteiro.
Para fisgar aqueles que não são fãs de basquete, The Last Dance também faz com maestria a CONTEXTUALIZAÇÃO DA ÉPOCA. Vemos no documentário um pouco sobre a cidade de Chicago, o descaso dos torcedores com o basquete e o Bulls – o patinho feio das fraquias da cidade –, o efeito Jordan no mundo da moda com a chegada dos Air Jordans; a massificação, popularização e transformação do negócio basquete pelo mundo. Tudo isso é causa ou consequência daquilo que vemos na quadra, tudo está interligado ao jogo, não está ali à toa.
Outro ponto fundamental para o sucesso da série: ROTEIRO. Você pode ter a melhor história nas suas mãos mas se você não souber conta-la, tudo pode ir por água abaixo. E The Last Dance soube. Os FLASHBACKS e FLASH FORWARDS no tempo e a utilização da ARTE de linha do tempo foram muito bem executados. Essas decisões de roteiro fizeram a série ganhar fôlego. A série é contada a partir dos acontecimentos nos 90, então consideremos que este seja o tempo presente, ok? Mas ela viaja para os anos 60, 70 e até para os dias de hoje. E cada intervenção para viajar no tempo tem ligação com o acontecimento do presente. Como por exemplo o excelente FLASHBACK com a história do tênis de Jordan em seu primeiro e último jogo no Madison Square Garden ou os FLASHBACKS para os tempos de Universidade; ou para apresentar a história de um ANTAGONISTA… Tudo muito bem executado, tudo muito bem amarrado no ROTEIRO.
E para fechar com gol de placa: EDIÇÃO e SONORIZAÇÃO. Ritmo, sensibilidade, isenção. Não temos música guiando sua emoção – exceto na parte final da série com Present Tense, do Pearl Jam quase como uma legenda sonora para as últimas imagens da série – o que torna tudo muito genuíno. O que você vê é o que você sente, não fabricaram para você com truques ou áudios. O som ambiente é preservado e valorizado. Uma verdadeira aula de audiovisual.
Tudo o que é fundamental para que uma grande história seja bem contada está ali em The Last Dance: arquivo, pesquisa, roteiro, grandes personagens, edição, sonorização, contextualização… arte.
Deixei para o final, o ponto de partida e fundamental para que tudo fosse possível: VISÃO. Sim, visão. Se lá em 1990-91, não se percebesse o surgimento de uma equipe que faria história, não se teria pensado em registrar esse material. Não se teria gravado esse material da forma como foi feito: com PLANEJAMENTO. Perceber os acontecimentos, sua importância e documentar é o primeiro grande passo, e o mais importante, para um documentário.
Já havia visto boas produções documentais em âmbito esportivo como Sunderland Till I Die (Netflix), All or Nothing (Amazon Prime Video), Sem Filtro (DAZN), mas The Last Dance elevou a produção esportiva a outro nível, ao patamar dos grandes documentários. O aumento de produções documentais esportivas e os impressionantes números de The Last Dance (leia sobre no artigo do amigo Bruno Maia aqui) mostram que o público esportivo não é apenas público de ao vivo – ele também é ávido por conteúdo de alta qualidade, por boas histórias. E, certamente, será um divisor de águas na visão de clubes, franquias, ligas para produção de conteúdo para seus fãs. Quem quiser aprender sobre produção de conteúdo audiovisual deve assistir The Last Dance. O futuro do conteúdo no esporte passa por ai.
Texto originalmente publicado em corujaproducoes.com.br/blog